domingo, 6 de abril de 2008

[UFRN-2009] LITERATURA - VIDAS SECAS



Vidas Secas
(Graciliano Ramos )

A literatura da época

Após a revolução artística, fruto das novas tendên-cias modernistas, no período de 1922 a 1930, surge uma Literatura Brasileira de caráter social e de um realismo regionalista. Essa nova tendência brasileira surgiu depois do famoso Congresso Regionalista de Recife, em 1926, organizado por Gilberto Freire, José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Esse congresso tinha como pro-posta básica organizar uma literatura comprometida com a problemática nordestina: a seca, as instituições arcaicas, a corrupção, o coronelismo, o latifúndio, a exploração de mão-de-obra, o misticismo fanatizante e os contrastes sociais.

Nessa literatura, chamada de Prosa Regionalista de 1930, devemos incluir José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo, este último com a retratação do Rio Grande do Sul. Estudaremos, a seguir, o mais impor-tante dos autores desta época, Graciliano Ramos.

Vida

Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrângulo, Alagoas, filho de Se-bastião Ramos de Oliveira e de Maria Amélia Ferro Ra-mos. Dois anos depois, a família muda-se para Buíque, Pernambuco, e logo depois volta para Alagoas, morando em Viçosa e Palmeira dos Índios ate 1914. Graciliano estuda, então, e trabalha na loja do pai comerciante.

Em 1914, vai para o Rio de Janeiro, onde mora du-rante um ano e trabalha como jornalista. No ano seguinte, volta para Palmeira dos Índios e se casa com Maria Au-gusta Barros, que morre cinco anos depois. Graciliano já, nessa época, escreve para jornais e trabalha com comér-cio.

Seu segundo casamento, com Heloísa Medeiros, ocor-re em 1928, no mesmo ano em que e eleito prefeito de Palmeira dos Índios, cidade que seria palco de seu primei-ro romance Caetés.

Em 1930, renuncia à prefeitura e vai para Maceió, onde e nomeado diretor da Imprensa Oficial, mas demite-se no ano seguinte, voltando em seguida para Palmeiras dos Índios, onde funda uma escola e escreve o romance São Bernardo.

Em 1933, é nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas e volta a Maceió. Sua carreira e interrompida em 1936, quando é demitido por motivos políticos. Nesse mesmo ano, publica o romance Angústia e acaba sendo preso e enviado ao Rio de Janeiro. Dessa fase em que passa preso resultaria, mais tarde, seu livro Memórias do Cárcere.

Ao sair da prisão, em 1937, passa a morar no Rio de Janeiro, onde escreve para jornais. No ano seguinte, pu-blica a obra Vidas Secas, escrita num quarto de pensão. Em 1939, e nomeado Inspetor Federal do Ensino.

Somente em 1945, Graciliano entra para o Partido Comunista Brasileiro e, sete anos depois, faz uma viagem a Tchecoslováquia e à União Soviética.

Graciliano Ramos morre em 20 de março de 1953 sem nunca ter retratado uma paisagem do Rio de Janeiro. Conta-se que certa vez andava com um de seus filhos, a pé, pela cidade. Chegaram a Laranjeiras, onde moravam. O filho parou de repente e exclamou: "Como isso aqui e bonito! ". Graciliano ficou surpreso e perguntou se ele achava aquela cidade tão bonita assim. Para Graciliano, Alagoas era seu único universo.

Obras

Romances

Caetés (1933)

São Bernardo (1934)

Angústia (1936)

Vidas Secas (1938)

Contos

Insônia (1947)

Alexandre e Outros Heróis (1962)

Memórias

Infância (1945)

Memórias do Cárcere (1953)

Crônicas

Linhas Tortas (1962)

Viventes das Alagoas (1962)

Viagens

Viagem (1954)

Comentários críticos

Graciliano Ramos foi um escritor extremamente cuidadoso, quanto a forma de seus livros. Reescrevia seus livros sem cessar, procurando retirar deles tudo aquilo que considerasse excesso. De estilo enxuto, então, Graciliano sempre foi considerado como exemplo de elegância e de elaboração.

É comum em suas obras o privilégio do substantivo em relação ao adjetivo. Por isso, alguns críticos gostam de afirmar que Graciliano deve ter se divertido muito quando, no romance Caetés, a personagem recebe uma carta repleta de adjetivos, denunciando o amor adúltero de sua esposa, Luísa.

Sua obra, apesar de centrar-se em determinada região, transcende o pitoresco e o descritivo dos regionalistas típicos da geração de 1930. Graciliano analisa profundamente a relação do homem com o meio, explorando também o lado psicológico e o lingüístico dessa relação.

Independente das limitações regionais, Graciliano faz uma análise profunda da condição humana. Desse modo torna-se universal.

Resumo da obra Vidas Secas

“Será um romance? É antes uma série de qua-dros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza.” (Lúcia Miguel-Pereira)

Chamar este romance de “série de quadros, de gravuras em madeira, talhada com precisão e firmeza” é aludir a um de seus traços estilísticos fundamentais: o caráter autônomo e completo de seus capítulos.

Estes podem ser lidos como peças independen-tes, e como tal foram publicados em jornais, mas reúnem-se com uma organicidade exemplar. Os capítulos de Vidas Secas mantêm uma estrutura descontínua, não-linear, como que reafirmando o isolamento, a instabilidade da família de retirantes: Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra Baleia.

Formado por treze capítulos que se justapõem sem nexos lógicos, o enredo de Vidas Secas organiza-se principal-mente pela proximidade entre o primeiro Mudança – a chegada da família de retirantes a uma velha fazenda abandonada e arruinada – e, o último, Fuga – a saída da família, que, diante de um novo período de seca, foge para o Sul.

Do capítulo 2 ao 12, a família vive como agre-gada na fazenda, para cujo proprietário Fabiano trabalha. Assim, passa uma fase de descanso, em relação ao seu nomadismo, provocado pela seca.

No entanto, além da tortura gerada pela lem-brança do passado e pelo medo do futuro, o romance enfoca outras faces da opressão que se exerce sobre os membros da família – seja entre eles e os outros homens, os moradores da cidade, seja consigo próprios.

No capítulo, Cadeia, por exemplo, Fabiano vai à cidade, bebe e joga com o soldado amarelo; quando resolve partir, este o provoca e o leva à cadeia, onde é preso e surrado. Um ano depois, Fabiano o reencontra, agora em seu território, a caatinga. Embora deseje vingança, acaba se curvando e ensinando o caminho ao sol-dado amarelo (cap. 11).

No episódio Contas (cap. 10), Fabiano é lesado financeiramente pelo patrão. Embora as contas do patrão não coincidam com as da Sinhá Vitória, que as confere, Fabiano não se defende; ao contrário, humilha-se e pede desculpas.

Outro exemplo de opressão e de falta de comunicação entre os seres da família animalizados pela misé-ria em que vivem, encontra-se no capítulo 6, em que o menino mais velho ouve a palavra inferno, acha-a bonita e procura aprender o seu significado com a mãe, que o repele brutalmente. Já no capítulo 7, Inverno, há uma cena em que a família se reúne numa noite de inverno, e Fabiano tenta contar histórias incompreensíveis enquanto os meninos passam frio.

Enfim, a questão central do romance não está nos acontecimentos, mas nas criaturas que o povoam, nas gravuras de madeira.

Com a análise psicológica do universo mental das personagens, que expõem por meio de discurso indireto livre, o narrador nos vai decifrando sua humanidade embotada, confundida com a paisagem áspera do sertão, neste romance transcende o regionalismo e seu contexto específico – a seca do Nord-este, a opressão dos pobres, a condição animalesca em que vivem – para esculpir o ser humano universal.

Opiniões sobre Vidas Secas

“O narrador não quer identificar-se ao personagem, e por isso há na sua voz uma certa objetividade de relator. Mas quer fazer as vezes do personagem, de modo que, sem perder a própria identidade, sugere a dele. [...] É como se o narrador fosse, não um intérprete mimético, mas alguém que institui a humanidade de seres que a sociedade põe à margem, empurrando-os para as fronteiras da animalidade. Aqui, a animalidade reage e penetra pelo universo reservado, em geral, ao adulto civilizado” (Antônio Cândido).

Na opinião de Antônio Cândido sobre o enredo de Vidas Secas: “Este encontro do fim com o começo [...] forma um anel de ferro, em cujo círculo sem saída se fecha a vida esmagada da pobre família de retirantes-agregados-retirantes, mostrando que a poderosa visão social de Graciliano Ramos neste livro não depende [...] do fato de ele ter feito romance regionaliza ou romance proletário. Mas do fato de ter sabido criar em todos os níveis, desde o pormenor do discurso até o desenho geral da composição, os modos literários de mostrar a visão dramática de um mundo opressivo”. (Antônio Cândido)

Resumo por capítulo

1. Mudança

Começando o livro, o narrador coloca diante do leitor o primeiro quadro:

a) uma tomada à distância: a família no ambiente da seca.

b) a caracterização de cada membro da família pelas suas atitudes.

2. Fabiano

O narrador mostra a desintegração progressiva de Fabiano:

a) Fabiano e a vida

b) Fabiano e a seca

c) Fabiano, a família e a seca.

3. Cadeia

Continua o narrador a mostrar Fabiano diante da sociedade. Ele vai comprar querosene: está com água. Vai comprar chita: é cara. É levado ao jogo, não sabe se co-municar, e é preso.

4. Sinhá Vitória

A apresentação de Sinhá Vitória é semelhante à de Fabiano. Aparece a sua dificuldade de relacionamento com os meninos, com a Baleia, com Fabiano. Sua aspira-ção: ter uma cama.

5. Menino mais novo

Quer espantar o irmão e Baleia. Observa o pai montar a égua. Fabiano cai, de pé. Ele vibra. Sinhá fica indiferente diante da façanha do pai, ele não se conforma com a indiferença da mãe. Tenta se comunicar com o pai, mas não consegue, fica chateado. A Baleia dormia. Foi tentar conversar com a mãe, levou um cascudo. Dorme, Sonha com um mundo adulto. No dia seguinte tenta montar o bode, mas sai sem honra da façanha. Cai, leva coices.

6. Menino mais velho

Quer saber o que seja inferno. Sinhá Vitória fala em es-petos quentes, fogueiras. Ele lhe perguntou se vira. A mãe zanga-se, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. Baleia era o único vivente que lhe mostra simpatia.

7. Inverno

Família reunida em torna do fogo. Não havia conversa, apenas grunhidos. Ninguém entende ninguém, já são poucos humanos.

8. Festa

Iam à festa de Natal na cidade. Na cidade se vê-em distantes da civilização. Fabiano não fala, mas admi-ra a loquacidade das pessoas da cidade.

9. Baleia

A cachorra Baleia aparecera doente. Fabiano imaginara que ela estivesse com hidrofobia, e amarrara-lhes no pescoço um rosário de sabugo de milho queima-do. Ela, de mal a pior. Resolvera matá-la.

10. Contas

Fabiano diante do imposto e da injustiça do pa-trão Nascera com esse destino, ninguém era culpado por nascer com destino ruim.

11. O soldado amarelo

Fabiano ia corcunda, parecia farejar o solo, quando encontrou o soldado amarelo. Lembrou-se do passado. Quis se vingar. Reviveu todo o passado. Pensou e repensou sua condição.

O soldado, antes cheio de medo, vendo Fabiano acanalhado, ganha coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. “Governo é governo.”

12. O mundo coberto de penas

Depois do inverno, de novo seca anunciada nas arribações. Fabiano luta contra a natureza, atira nas arri-bações.

13. Fuga

O mesmo quadro do primeiro capítulo. No primeiro quadro os meninos se arrastavam atrás dos pais, neste os pais se arrastam atrás dos meninos. Os meninos corriam. Era o destino do Norte – O (nor)destino.

Texto

Fuga

Graciliano Ramos

A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.

Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.

Saíram de madrugada. Sinhá Vitória meteu o braço pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, Sinhá Vitória lembrou-se da cachorra Baleia, chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o choro.

Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul. Com a fresca da madrugada, andaram bastante, em silêncio, quatro sombras no caminho estreito coberto de seixos miúdos – os meninos à frente, conduzindo trouxas de roupa, Sinhá Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano atrás de facão de rasto e faca de ponta, a cuia pendurada por uma correia amarrada ao cinturão, o aió a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da malotagem no outro. Caminharam bem três léguas antes que a barra do nascente aparecesse.

Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adian-tavam, aconselhara-os a poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-1he sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia aquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia, pensando em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, que precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom companheiro, a égua alazã, as catingueiras, as pane-las de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuri-dão. Seria necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho coberto de seixos.

Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade. Procu-rou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas, por baixo da aba curva do chapéu, protegi-am-lhe os ombros contra a claridade e tremiam.

Os braços penderam, desanimados.

– Acabou-se.

Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profun-damente azul. Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim.

Desde o aparecimento das arribações vivia desassos-segado. Trabalhava demais para não perder o sono. Mas no meio do serviço um arrepio corria-lhe no espinhaço, a noite acordava agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido pelas pulgas, conjecturando misérias.

A luz aumentou e espalhou-se pela campina. Só aí principiou a viagem. Fabiano atentou na mulher e nos filhos, apanhou a espingarda e o saco de mantimentos, ordenou a marcha com uma interjeição áspera.

(RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 16. ed. São Paulo, Martins, 1967. p. 147-9).

Vocabulário

copiar (s.m.): varanda; alpendre.

aió (s.m.): bolsa feita de fibra de caroá

garrancho (s.m.): ramo tortuoso de arvore.

espingarda de pederneira: espingarda de caça na qual o mecanismo se encontra no exterior da arma.

arribação (s.f.): tipo de ave

morrinhento (adj.): enfraquecido, prostrado.

malotagem (s.f.): provisão de mantimentos.

seixo (s.m.): pedra solta.

alazão (adj.): amarelo-avermelhado.

folha (s.f.): metal.
Fonte:P.TRASDLETRAS
Ozamir Lima

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